sexta-feira, 30 de setembro de 2011
Kardec em Quadros
Uma vez criei um roteiro que batizei de Kardec. Uma peregrinação heroica em um momento peculiar e transitório no século XIX.
Falar dessa transição de ideias metafísicas que originaram o século XX e XXI sempre foi a minha intenção com o livro. Falar de religiões, ocultismo e ideias fantásticas sobre o que é a realidade. Eu queria escrever sobre o século XIX, mas o século XIX que desconhecemos.
Kardec não é documentário, mas também não é só ficção. É o que eu chamo de ficção
histórica. Então é um meio-termo. Kardec também não é uma aula ou ensaio sobre
espiritismo. Kardec é um livro de aventura que tem como universo abordado a origem do
espiritismo. Kardec é um Robinson Crusoé.
A primeira fonte de inspiração para este projeto foi Charles Crumb, o irmão de Robert
Crumb. Tudo começou em 1996, quando eu assisti ao filme Crumb. Charles Crumb,
aficionado pelo século XIX, despertou em mim o mesmo fascínio e curiosidade.
“A sua luz e, supostamente, a sua sombra”. A partir de 1996, eu li e reli os clássicos como Poe, Joseph Conrad, Robert Stevenson, Kipling e outros autores. Outro aficionado pelo século XIX foi Alan Moore, com o seu Do Inferno. Alan Moore e Eddie Campbell fizeram uma obra-prima.
Inicialmente, encontrava-me sem algum plano ou objetivo criativo, possuindo apenas sede de ler e viajar no século XIX, de criar a planta baixa imaginativa sobre o século XIX. Com o meu amigo Guazzelli, aprendi que é possível conhecer muito mais sobre História com a ficção, com literatura, cinema e outras artes do que propriamente com o estudo clássico da História.
Passados os anos de 1998 até 2007, eu tive a ideia de escrever sobre o século XIX.
Primeiramente eu pensei em adaptar Sherlock Holmes, mas logo desisti da ideia. Então,
criei um roteiro de como Conan Doyle criou o Sherlock e, pesquisando sobre Doyle,
cheguei até o livro que ele escreveu sobre o espiritismo. Foram as ligações de Conan Doyle com o espiritismo que me fizeram chegar ao Kardec.
Vou precisar fazer um parêntese:
Os Sertões- a luta (editora Desiderata) não foi a minha primeira narrativa longa. A primeira foi Caos, hq autoral que escrevi, desenhei e editei. E Kardec, de certa forma, foi revistar Caos.
As ideias que explorei em Kardec foram antes semeadas em Caos. Caos é sobre uma
personagem que investiga o suposto sobrenatural e é absorvida por esse universo. Kardec segue a mesma linha, as mesmas leis e universo.
Voltando ao ESPIRITISMO de Conan Doyle, lendo sobre esse livro, lembrei de Allan
Kardec. Peguei da estante uma edição de O Livro dos Médiuns, que comprei em um sebo, e comecei a ler. Foi ali que fui fisgado pelas mesas girantes e tive a certeza de que essa era a história que eu queria escrever.
O que eu busquei com esse roteiro foi um marco zero para mim, tudo que criei nos
quadrinhos antes seria posto na gaveta ou na geladeira. Uma nova busca criativa começaria dali.
No início, eu não queria só escrever, mas também desenhar. Escrevi o roteiro das primeiras cenas e em seguida veio o convite para adaptar Os Sertões – A Luta. Congelei por um tempo e me dediquei à adaptação da obra de Euclides da Cunha. Mas, no meio do processo...
O Rodrigo Rosa e eu, quando trabalhamos juntos, somos uma espécie de “centauro”. Às
vezes um é a razão e outro o instinto, ou vice-versa. Somos artistas diferentes, de ideias diferentes, mas com buscas próximas que, somadas às nossas artes, fazem surgir uma nova criatura, o centauro. Foi ele que me apresentou um concurso de álbuns em uma editora na Espanha e me propôs fazermos um projeto para participarmos. Conversando sobre o concurso, mostrei o roteiro das cenas do Kardec que eu tinha escrito e ele rapidamente me convenceu de que seria o desenhista desse álbum. Desisti de desenhar Kardec (quase sempre desisto de desenhar, e a culpa é tua, mãe...). Agora, sério... Desisti de desenhar porque o meu Kardec seria algo mais próximo Do Inferno. Por isso achei que seria interessante passar o bastão para o Rodrigo Rosa. Rodrigo e eu queremos trabalhar como uma dupla de quadrinhos há mais de 20 anos. Nossas maiores inspirações são Osterheld e Breccia, Sampayo e Muñoz, Abuli e Bernet. Também somos amigos há mais de vinte anos. Como temos outros projetos, achei interessante dividir esse livro com ele, esses quadrinhos, principalmente porque a busca do Rodrigo aqui transcende ao interesse com as artes. Rodrigo tem o espiritismo em casa, com a família. Já eu sou de uma família que é uma salada religiosa e mística, mas me mantenho agnóstico.
A minha visão sobre Allan Kardec era leiga. Ele era algo como a figura do médium que via espíritos, como um vovozinho. Nada a ver com o que descobri... Descobri que para muitos espíritas a verdade sobre Allan Kardec era desconhecida também.
Como diretor de programas de tevê, contribuí diversos anos com episódios da série
Histórias Extraordinárias, na RBS TV, oficio que me deu experiência no campo de
pesquisas. Essa é a fase que mais me fascina: a pesquisa. Para a pesquisa e a investigação em Kardec, eu li 27 livros. Livros escritos por Allan Kardec, sobre Allan Kardec, sobre Espiritismo, Druidas, Celtas, Xamãs, Paris, Roma. Assisti a filmes que não eram ligados ao espiritismo, mas que me impulsionavam a buscar o teor de realismo e estética apropriados ao Kardec. Li e visitei vários sites e blogs sobre os assuntos envolvidos. Isso antes e durante a produção do roteiro. Não acredito em um processo de criação de uma história em quadrinhos em que o roteiro deve ser produzido e finalizado antes dos desenhos. Acho que com os quadrinhos é importante os dois processos acontecerem quase juntos. Digamos que o roteiro larga na frente, e o desenhista serve como um laboratório, pois é o primeiro leitor. Através da reação dele podemos aprender se o texto vai funcionando ou não. E nessa curta experiência que tenho, percebi que o texto em partes estimula muito o desenhista a se aventurar e aprofundar o seu talento. Essa foi a experiência navegada para o Rodrigo. Ele viu as mudanças acontecerem do primeiro ao último tratamento de argumento. Inicialmente
Kardec foi projetado em 80 páginas. Foi o Rodrigo que trouxe energia para 100 páginas, executando tudo o que está no roteiro em seus belos desenhos. Quando
comecei o texto do roteiro fui metódico e decupei quadros e páginas, mas à medida que a história avançava e o Rodrigo desenhava, encarnando o clima apropriado, eu desencarnava essa decupagem rígida e me aproximava mais do formato cinematográfico de roteiro.
No total foram três anos de pesquisa e roteiro e desenhos.
Outras personalidades importantes para a realização do Kardec são o Lobo, o Chico e o
Chris. Esses caras estão revolucionando o mercado dos quadrinhos com a editora Barba
Negra. O Kardec não poderia acontecer em outra casa e família. Foi na cozinha do apê
do Lobo, em Copacabana, que eu contei para ele sobre Kardec. Pactuamos que ele seria o editor do livro, e ainda nem tinha nascido a Barba Negra. Esse foi o primeiro contrato com a editora. E não será o último.
Nada a ver com o que descobri... No fim, Kardec é uma revelação. Uma saga ao
conhecimento universal. Uma chave para abrir portas e nos conectar com a verdade.
Acredito que depois de escrever este projeto eu não sou tão agnóstico assim, mas isso é outra história...
sábado, 9 de abril de 2011
REVISTA FÓRUM
O PT não tem, nem nunca teve, um projeto de política cultural para o país.
O PT não tem, nem nunca teve — e quem me acompanha na internet sabe que quem
fala aqui é um petista — uma compreensão de política cultural que fosse além
das generalidades do tipo “devemos garantir a expressão das mais variadas
manifestações culturais” ou “devemos criar condições para a circulação da
cultura popular”. Isso não quer dizer que boas secretarias de cultura não
tenham existido nas administrações municipais do partido. Os casos de Porto
Alegre e Belo Horizonte, e mesmo da São Paulo de Luiza Erundina e Marta
Suplicy, podem ser mencionados como exemplos de que, mesmo sem uma política
cultural nacional, é possível fazer com a cultura, em nível municipal, muito
mais que nossas elites tradicionalmente fizeram. Mas as polêmicas recentes
envolvendo o Ministério da Cultura deixaram clara a falta que faz, dentro do
partido, a existência de um projeto coerente para a cultura.
Para entender essa ausência, talvez valha a pena repassar alguns momentos
da história recente da esquerda com a cultura. Dentro desse contexto, é
possível apreciar a revolução que representou a experiência do Ministério da
Cultura de Lula. Divido essa trajetória em quatro momentos, que representam
quatro relações diferentes da esquerda com a cultura brasileira. Não são
momentos estanques, e em certa medida eles se sobrepõem e se misturam. Mas
creio que eles apontam para quatro matizes distintos na relação da esquerda
com a cultura.
• A esquerda partidária e os movimentos sociais organizam um primeiro
projeto orgânico para a cultura brasileira com o CPC da UNE . Fundado em
1961 a partir de uma dissidência do Teatro de Arena, o CPC teve o grande
mérito de instalar a produção cultural no interior da luta pela
transformação da sociedade brasileira. Os cepecistas foram os primeiros a
atentar de modo sistemático para a contradição com a qual brigava a produção
cultural de esquerda – a saber, a de falar para o proletariado mas contar
com um público ouvinte, leitor e espectador que era majoritariamente
burguês. O eixo da intervenção do CPC era o conceito de nacional-popular, ou
seja, uma compreensão de cultura brasileira que afirmava que a arte nacional
seria aquela que tivesse um caráter genuinamente popular. A partir daí, o
cepecismo derivou um dos vícios crônicos da reflexão de esquerda sobre a
cultura: a divisão entre arte e cultura “autenticamente” populares e aquelas
que seriam meros reflexos de uma cultura importada e inautêntica. Daí para
as passeatas contra a guitarra elétrica foi um pulo. Para complicar mais a
coisa, o CPC não percebeu que os limites entre a arte erudita (tolerada), a
cultura de massas (demonizada) e a cultura popular (louvada) eram bem mais
fluidos do que se imaginava ao princípio. A concepção cepecista de cultura
foi derrotada num dos maiores embates culturais da história moderna
brasileira, aquele que opôs o trovadorismo acústico de protesto, à la
Geraldo Vandré (privilegiado pelo CPC como arte autêntica), ao tropicalismo
de Caetano e Gil. Com uma compreensão bem mais sofisticada do que, naquele
momento, ainda não se chamava globalização, o tropicalismo fez com que, em
1968/69, o cepecismo já fosse uma forma anacrônica de entender a cultura
brasileira. Existem intelectuais petistas que, quando falam em cultura
popular, ainda a pensam nos moldes do CPC.
• Ao longo dos anos 70, a esquerda brasileira pensa sua relação com a
política cultural através daquilo que poderíamos chamar o modelo Embrafilme.
A Empresa Brasileira de Filmes não foi sua única representante, mas foi seu
grande emblema. Enquanto dramaturgos de esquerda como Dias Gomes eram
incorporados pela TV Globo como roteiristas de novela, a ditadura absorvia
elementos do discurso nacionalista de esquerda dos anos 60 para formular sua
própria política cultural. Além de outorgar generosos subsídios a
megaconglomerados (TV Globo, Editora Abril etc.), o estado impulsionou uma
nova política de turismo que se alimentava da mercantilização da cultura
popular. No nordeste, as Casas de Cultura Popular operaram em estreita
colaboração com a indústria do turismo. Através de órgãos como o Conselho
Federal de Cultura, o estado faria do ideologema “Cultura para o povo” sua
nova ordem. Para a elaboração de tais políticas, o estado tecnocrático
recorreu, em grande medida, a intelectuais tradicionais e conservadores
remanescentes da antiga sociedade agro-exportadora, então agrupados
majoritariamente em academias de letras e institutos históricos e
geográficos (IBGEs). Na esquerda, a política cultural ficou restrita a uma
variação do conhecido “entrismo”: mesmo com um regime de direita, era
possível “ocupar espaços” (como o da Embrafilme), pagando, no processo, o
preço de ter que coincidir com a ditadura numa visão nacionalista estreita.
Os sucessos da Embrafilme foram notáveis e o cinema nacional chegou a
representar 35% do público espectador no país. Mas o modelo Embrafilme
também contribuiu para que a esquerda não conseguisse pensar a política
cultural mais além do mecenato estatal. A esquerda só deixaria de pensar as
relações entre estado e política cultural fora do mecenato a partir de um
recurso eminentemente mercadológico, a Lei Rouanet.
• Com a redemocratização, as relações da esquerda com a política cultural
entram naquilo que poderíamos chamar o momento Lei Rouanet. O financiamento
da cultura é deslocado para uma parceira entre estado e capital privado,
através da figura da isenção fiscal. A Lei Rouanet, promulgada em 1991, tem
o mérito de oferecer uma alternativa ao mecenato estatal, mas se mantém
presa a um modelo que, na prática, permite ao capital privado fazer
propaganda de si mesmo com dinheiro público. Do ponto de vista da empresa, a
renúncia fiscal só tem sentido se for entendida como investimento em imagem,
o que faz com que sejam privilegiadas as iniciativas que já têm garantidas
um nicho de mercado. Daí os “escândalos” com os quais periodicamente nos
acostumamos na cobertura midiática da Lei Rouanet: um patrocínio estatal ao
Circo de Soleil, por exemplo, ou incentivos para que grandes artistas
globais tenham seus espetáculos de teatro financiados via renúncia fiscal.
Trata-se de iniciativas que não são ilegais nem antiéticas, necessariamente,
mas que contribuem a que a lei termine reforçando a submissão da cultura à
lógica do mercado. No período da Lei Rouanet, reforçam-se os laços entre a
chamada “classe artística” e o PT—entendendo-se a expressão “classe
artística” no sentido em que a entende a atual ministra, ou seja, os grandes
nomes da indústria cinematográfico-teatral-fonográfica do eixo Rio de
Janeiro-São Paulo. Essa aproximação é importante, porque ajuda a entender a
articulação que levou a uma opção de não-continuidade entre os Ministérios
da Cultura de Lula e de Dilma. Nessa articulação, cumpriu papel central um
dos representantes históricos da “classe artística” no PT, o ator Antônio
Grassi.
• O momento Lula é marcado por uma ruptura com concepções anteriores de
política cultural na esquerda. Por uma feliz conjunção de fatores, o
Ministério da Cultura sob Gilberto Gil e, depois sob Juca Ferreira,
revoluciona a compreensão de cultura que tinha a esquerda brasileira. Esse
movimento não passa diretamente pelo PT, mas para ele contribuíram muitos
petistas, especialmente no segundo e terceiro escalões do ministério. Em
primeiro lugar, o MinC Gil/Juca rompe com um velho dogma da esquerda: trata
da produção cultural em diálogo com as novas tecnologias, sem demonizá-las.
Entende que não é possível pensar uma política cultural de esquerda sem uma
compreensão renovada do papel do audiovisual, da internet, das novas
técnicas de reprodutibilidade digital. Entende também que não é papel dos
sujeitos políticos estabelecer distinções entre a cultura que seria
autenticamente brasileira e aquela que não o seria. Nesse sentido, foi o
primeiro ministério da cultura do país que incorporou as lições do
tropicalismo. Além disso, o MinC Gil / Juca abandona de vez o dirigismo
tradicional da esquerda e, ao invés de trabalhar com a ideia de “levar”
cultura à sociedade, estabelece, com o projeto dos Pontos de Cultura, uma
concepção nova e revolucionária: a cultura já está sendo produzida pelos
sujeitos sociais. O que há que se fazer é criar teias, redes, possibilidades
de circulação. O MinC Gil / Juca sai do terreno reservado à cultura (o de
adorno beletrístico) e passa a colocar em xeque os seus sustentáculos
econômicos — daí o projeto de revisão da lei de direitos autorais, que se
choca diretamente com os interesses do lobby das patentes e da propriedade
intelectual. Com uma multiplicidade de fóruns, consultas públicas,
congressos e encontros, o Ministério gera uma massa crítica que se sente
cada vez mais incluída, cada vez mais agente do movimento vivo da política
cultural. Erros aconteceram, limitações houve, e nem tudo foi bem feito. Mas
não há dúvidas de que a gestão Gil / Juca abre um outro paradigma nas
relações da esquerda com a política cultural.
É esse novo horizonte, tão promissor, que se encontra agora ameaçado.
O PT não tem, nem nunca teve — e quem me acompanha na internet sabe que quem
fala aqui é um petista — uma compreensão de política cultural que fosse além
das generalidades do tipo “devemos garantir a expressão das mais variadas
manifestações culturais” ou “devemos criar condições para a circulação da
cultura popular”. Isso não quer dizer que boas secretarias de cultura não
tenham existido nas administrações municipais do partido. Os casos de Porto
Alegre e Belo Horizonte, e mesmo da São Paulo de Luiza Erundina e Marta
Suplicy, podem ser mencionados como exemplos de que, mesmo sem uma política
cultural nacional, é possível fazer com a cultura, em nível municipal, muito
mais que nossas elites tradicionalmente fizeram. Mas as polêmicas recentes
envolvendo o Ministério da Cultura deixaram clara a falta que faz, dentro do
partido, a existência de um projeto coerente para a cultura.
Para entender essa ausência, talvez valha a pena repassar alguns momentos
da história recente da esquerda com a cultura. Dentro desse contexto, é
possível apreciar a revolução que representou a experiência do Ministério da
Cultura de Lula. Divido essa trajetória em quatro momentos, que representam
quatro relações diferentes da esquerda com a cultura brasileira. Não são
momentos estanques, e em certa medida eles se sobrepõem e se misturam. Mas
creio que eles apontam para quatro matizes distintos na relação da esquerda
com a cultura.
• A esquerda partidária e os movimentos sociais organizam um primeiro
projeto orgânico para a cultura brasileira com o CPC da UNE . Fundado em
1961 a partir de uma dissidência do Teatro de Arena, o CPC teve o grande
mérito de instalar a produção cultural no interior da luta pela
transformação da sociedade brasileira. Os cepecistas foram os primeiros a
atentar de modo sistemático para a contradição com a qual brigava a produção
cultural de esquerda – a saber, a de falar para o proletariado mas contar
com um público ouvinte, leitor e espectador que era majoritariamente
burguês. O eixo da intervenção do CPC era o conceito de nacional-popular, ou
seja, uma compreensão de cultura brasileira que afirmava que a arte nacional
seria aquela que tivesse um caráter genuinamente popular. A partir daí, o
cepecismo derivou um dos vícios crônicos da reflexão de esquerda sobre a
cultura: a divisão entre arte e cultura “autenticamente” populares e aquelas
que seriam meros reflexos de uma cultura importada e inautêntica. Daí para
as passeatas contra a guitarra elétrica foi um pulo. Para complicar mais a
coisa, o CPC não percebeu que os limites entre a arte erudita (tolerada), a
cultura de massas (demonizada) e a cultura popular (louvada) eram bem mais
fluidos do que se imaginava ao princípio. A concepção cepecista de cultura
foi derrotada num dos maiores embates culturais da história moderna
brasileira, aquele que opôs o trovadorismo acústico de protesto, à la
Geraldo Vandré (privilegiado pelo CPC como arte autêntica), ao tropicalismo
de Caetano e Gil. Com uma compreensão bem mais sofisticada do que, naquele
momento, ainda não se chamava globalização, o tropicalismo fez com que, em
1968/69, o cepecismo já fosse uma forma anacrônica de entender a cultura
brasileira. Existem intelectuais petistas que, quando falam em cultura
popular, ainda a pensam nos moldes do CPC.
• Ao longo dos anos 70, a esquerda brasileira pensa sua relação com a
política cultural através daquilo que poderíamos chamar o modelo Embrafilme.
A Empresa Brasileira de Filmes não foi sua única representante, mas foi seu
grande emblema. Enquanto dramaturgos de esquerda como Dias Gomes eram
incorporados pela TV Globo como roteiristas de novela, a ditadura absorvia
elementos do discurso nacionalista de esquerda dos anos 60 para formular sua
própria política cultural. Além de outorgar generosos subsídios a
megaconglomerados (TV Globo, Editora Abril etc.), o estado impulsionou uma
nova política de turismo que se alimentava da mercantilização da cultura
popular. No nordeste, as Casas de Cultura Popular operaram em estreita
colaboração com a indústria do turismo. Através de órgãos como o Conselho
Federal de Cultura, o estado faria do ideologema “Cultura para o povo” sua
nova ordem. Para a elaboração de tais políticas, o estado tecnocrático
recorreu, em grande medida, a intelectuais tradicionais e conservadores
remanescentes da antiga sociedade agro-exportadora, então agrupados
majoritariamente em academias de letras e institutos históricos e
geográficos (IBGEs). Na esquerda, a política cultural ficou restrita a uma
variação do conhecido “entrismo”: mesmo com um regime de direita, era
possível “ocupar espaços” (como o da Embrafilme), pagando, no processo, o
preço de ter que coincidir com a ditadura numa visão nacionalista estreita.
Os sucessos da Embrafilme foram notáveis e o cinema nacional chegou a
representar 35% do público espectador no país. Mas o modelo Embrafilme
também contribuiu para que a esquerda não conseguisse pensar a política
cultural mais além do mecenato estatal. A esquerda só deixaria de pensar as
relações entre estado e política cultural fora do mecenato a partir de um
recurso eminentemente mercadológico, a Lei Rouanet.
• Com a redemocratização, as relações da esquerda com a política cultural
entram naquilo que poderíamos chamar o momento Lei Rouanet. O financiamento
da cultura é deslocado para uma parceira entre estado e capital privado,
através da figura da isenção fiscal. A Lei Rouanet, promulgada em 1991, tem
o mérito de oferecer uma alternativa ao mecenato estatal, mas se mantém
presa a um modelo que, na prática, permite ao capital privado fazer
propaganda de si mesmo com dinheiro público. Do ponto de vista da empresa, a
renúncia fiscal só tem sentido se for entendida como investimento em imagem,
o que faz com que sejam privilegiadas as iniciativas que já têm garantidas
um nicho de mercado. Daí os “escândalos” com os quais periodicamente nos
acostumamos na cobertura midiática da Lei Rouanet: um patrocínio estatal ao
Circo de Soleil, por exemplo, ou incentivos para que grandes artistas
globais tenham seus espetáculos de teatro financiados via renúncia fiscal.
Trata-se de iniciativas que não são ilegais nem antiéticas, necessariamente,
mas que contribuem a que a lei termine reforçando a submissão da cultura à
lógica do mercado. No período da Lei Rouanet, reforçam-se os laços entre a
chamada “classe artística” e o PT—entendendo-se a expressão “classe
artística” no sentido em que a entende a atual ministra, ou seja, os grandes
nomes da indústria cinematográfico-teatral-fonográfica do eixo Rio de
Janeiro-São Paulo. Essa aproximação é importante, porque ajuda a entender a
articulação que levou a uma opção de não-continuidade entre os Ministérios
da Cultura de Lula e de Dilma. Nessa articulação, cumpriu papel central um
dos representantes históricos da “classe artística” no PT, o ator Antônio
Grassi.
• O momento Lula é marcado por uma ruptura com concepções anteriores de
política cultural na esquerda. Por uma feliz conjunção de fatores, o
Ministério da Cultura sob Gilberto Gil e, depois sob Juca Ferreira,
revoluciona a compreensão de cultura que tinha a esquerda brasileira. Esse
movimento não passa diretamente pelo PT, mas para ele contribuíram muitos
petistas, especialmente no segundo e terceiro escalões do ministério. Em
primeiro lugar, o MinC Gil/Juca rompe com um velho dogma da esquerda: trata
da produção cultural em diálogo com as novas tecnologias, sem demonizá-las.
Entende que não é possível pensar uma política cultural de esquerda sem uma
compreensão renovada do papel do audiovisual, da internet, das novas
técnicas de reprodutibilidade digital. Entende também que não é papel dos
sujeitos políticos estabelecer distinções entre a cultura que seria
autenticamente brasileira e aquela que não o seria. Nesse sentido, foi o
primeiro ministério da cultura do país que incorporou as lições do
tropicalismo. Além disso, o MinC Gil / Juca abandona de vez o dirigismo
tradicional da esquerda e, ao invés de trabalhar com a ideia de “levar”
cultura à sociedade, estabelece, com o projeto dos Pontos de Cultura, uma
concepção nova e revolucionária: a cultura já está sendo produzida pelos
sujeitos sociais. O que há que se fazer é criar teias, redes, possibilidades
de circulação. O MinC Gil / Juca sai do terreno reservado à cultura (o de
adorno beletrístico) e passa a colocar em xeque os seus sustentáculos
econômicos — daí o projeto de revisão da lei de direitos autorais, que se
choca diretamente com os interesses do lobby das patentes e da propriedade
intelectual. Com uma multiplicidade de fóruns, consultas públicas,
congressos e encontros, o Ministério gera uma massa crítica que se sente
cada vez mais incluída, cada vez mais agente do movimento vivo da política
cultural. Erros aconteceram, limitações houve, e nem tudo foi bem feito. Mas
não há dúvidas de que a gestão Gil / Juca abre um outro paradigma nas
relações da esquerda com a política cultural.
É esse novo horizonte, tão promissor, que se encontra agora ameaçado.
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