sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Kardec em Quadros


Uma vez criei um roteiro que batizei de Kardec. Uma peregrinação heroica em um momento peculiar e transitório no século XIX.
Falar dessa transição de ideias metafísicas que originaram o século XX e XXI sempre foi a minha intenção com o livro. Falar de religiões, ocultismo e ideias fantásticas sobre o que é a realidade. Eu queria escrever sobre o século XIX, mas o século XIX que desconhecemos.
Kardec não é documentário, mas também não é só ficção. É o que eu chamo de ficção
histórica. Então é um meio-termo. Kardec também não é uma aula ou ensaio sobre
espiritismo. Kardec é um livro de aventura que tem como universo abordado a origem do
espiritismo. Kardec é um Robinson Crusoé.

A primeira fonte de inspiração para este projeto foi Charles Crumb, o irmão de Robert
Crumb. Tudo começou em 1996, quando eu assisti ao filme Crumb. Charles Crumb,
aficionado pelo século XIX, despertou em mim o mesmo fascínio e curiosidade.

“A sua luz e, supostamente, a sua sombra”. A partir de 1996, eu li e reli os clássicos como Poe, Joseph Conrad, Robert Stevenson, Kipling e outros autores. Outro aficionado pelo século XIX foi Alan Moore, com o seu Do Inferno. Alan Moore e Eddie Campbell fizeram uma obra-prima.
Inicialmente, encontrava-me sem algum plano ou objetivo criativo, possuindo apenas sede de ler e viajar no século XIX, de criar a planta baixa imaginativa sobre o século XIX. Com o meu amigo Guazzelli, aprendi que é possível conhecer muito mais sobre História com a ficção, com literatura, cinema e outras artes do que propriamente com o estudo clássico da História.

Passados os anos de 1998 até 2007, eu tive a ideia de escrever sobre o século XIX.
Primeiramente eu pensei em adaptar Sherlock Holmes, mas logo desisti da ideia. Então,
criei um roteiro de como Conan Doyle criou o Sherlock e, pesquisando sobre Doyle,
cheguei até o livro que ele escreveu sobre o espiritismo. Foram as ligações de Conan Doyle com o espiritismo que me fizeram chegar ao Kardec.

Vou precisar fazer um parêntese:
Os Sertões- a luta (editora Desiderata) não foi a minha primeira narrativa longa. A primeira foi Caos, hq autoral que escrevi, desenhei e editei. E Kardec, de certa forma, foi revistar Caos.
As ideias que explorei em Kardec foram antes semeadas em Caos. Caos é sobre uma
personagem que investiga o suposto sobrenatural e é absorvida por esse universo. Kardec segue a mesma linha, as mesmas leis e universo.

Voltando ao ESPIRITISMO de Conan Doyle, lendo sobre esse livro, lembrei de Allan
Kardec. Peguei da estante uma edição de O Livro dos Médiuns, que comprei em um sebo, e comecei a ler. Foi ali que fui fisgado pelas mesas girantes e tive a certeza de que essa era a história que eu queria escrever.

O que eu busquei com esse roteiro foi um marco zero para mim, tudo que criei nos
quadrinhos antes seria posto na gaveta ou na geladeira. Uma nova busca criativa começaria dali.
No início, eu não queria só escrever, mas também desenhar. Escrevi o roteiro das primeiras cenas e em seguida veio o convite para adaptar Os Sertões – A Luta. Congelei por um tempo e me dediquei à adaptação da obra de Euclides da Cunha. Mas, no meio do processo...

O Rodrigo Rosa e eu, quando trabalhamos juntos, somos uma espécie de “centauro”. Às
vezes um é a razão e outro o instinto, ou vice-versa. Somos artistas diferentes, de ideias diferentes, mas com buscas próximas que, somadas às nossas artes, fazem surgir uma nova criatura, o centauro. Foi ele que me apresentou um concurso de álbuns em uma editora na Espanha e me propôs fazermos um projeto para participarmos. Conversando sobre o concurso, mostrei o roteiro das cenas do Kardec que eu tinha escrito e ele rapidamente me convenceu de que seria o desenhista desse álbum. Desisti de desenhar Kardec (quase sempre desisto de desenhar, e a culpa é tua, mãe...). Agora, sério... Desisti de desenhar porque o meu Kardec seria algo mais próximo Do Inferno. Por isso achei que seria interessante passar o bastão para o Rodrigo Rosa. Rodrigo e eu queremos trabalhar como uma dupla de quadrinhos há mais de 20 anos. Nossas maiores inspirações são Osterheld e Breccia, Sampayo e Muñoz, Abuli e Bernet. Também somos amigos há mais de vinte anos. Como temos outros projetos, achei interessante dividir esse livro com ele, esses quadrinhos, principalmente porque a busca do Rodrigo aqui transcende ao interesse com as artes. Rodrigo tem o espiritismo em casa, com a família. Já eu sou de uma família que é uma salada religiosa e mística, mas me mantenho agnóstico.

A minha visão sobre Allan Kardec era leiga. Ele era algo como a figura do médium que via espíritos, como um vovozinho. Nada a ver com o que descobri... Descobri que para muitos espíritas a verdade sobre Allan Kardec era desconhecida também.

Como diretor de programas de tevê, contribuí diversos anos com episódios da série
Histórias Extraordinárias, na RBS TV, oficio que me deu experiência no campo de
pesquisas. Essa é a fase que mais me fascina: a pesquisa. Para a pesquisa e a investigação em Kardec, eu li 27 livros. Livros escritos por Allan Kardec, sobre Allan Kardec, sobre Espiritismo, Druidas, Celtas, Xamãs, Paris, Roma. Assisti a filmes que não eram ligados ao espiritismo, mas que me impulsionavam a buscar o teor de realismo e estética apropriados ao Kardec. Li e visitei vários sites e blogs sobre os assuntos envolvidos. Isso antes e durante a produção do roteiro. Não acredito em um processo de criação de uma história em quadrinhos em que o roteiro deve ser produzido e finalizado antes dos desenhos. Acho que com os quadrinhos é importante os dois processos acontecerem quase juntos. Digamos que o roteiro larga na frente, e o desenhista serve como um laboratório, pois é o primeiro leitor. Através da reação dele podemos aprender se o texto vai funcionando ou não. E nessa curta experiência que tenho, percebi que o texto em partes estimula muito o desenhista a se aventurar e aprofundar o seu talento. Essa foi a experiência navegada para o Rodrigo. Ele viu as mudanças acontecerem do primeiro ao último tratamento de argumento. Inicialmente
Kardec foi projetado em 80 páginas. Foi o Rodrigo que trouxe energia para 100 páginas, executando tudo o que está no roteiro em seus belos desenhos. Quando
comecei o texto do roteiro fui metódico e decupei quadros e páginas, mas à medida que a história avançava e o Rodrigo desenhava, encarnando o clima apropriado, eu desencarnava essa decupagem rígida e me aproximava mais do formato cinematográfico de roteiro.

No total foram três anos de pesquisa e roteiro e desenhos.

Outras personalidades importantes para a realização do Kardec são o Lobo, o Chico e o
Chris. Esses caras estão revolucionando o mercado dos quadrinhos com a editora Barba
Negra. O Kardec não poderia acontecer em outra casa e família. Foi na cozinha do apê
do Lobo, em Copacabana, que eu contei para ele sobre Kardec. Pactuamos que ele seria o editor do livro, e ainda nem tinha nascido a Barba Negra. Esse foi o primeiro contrato com a editora. E não será o último.

Nada a ver com o que descobri... No fim, Kardec é uma revelação. Uma saga ao
conhecimento universal. Uma chave para abrir portas e nos conectar com a verdade.
Acredito que depois de escrever este projeto eu não sou tão agnóstico assim, mas isso é outra história...