De 25 a 31 de maio último, aconteceu em Buenos Aires, Argentina, o 2º Festival Internacional de Historietas, mais conhecido como Viñetas Sueltas. Uma das atrações desta edição foi o lançamento da revista brasileira Picabu no evento.
Carlos Ferreira, um dos autores presentes na Picabu, esteve na capital argentina e se dispôs a escrever um texto para o Universo HQ com suas impressões sobre o Viñetas Sueltas. Confira abaixo.
Não poderia ter sido melhor. Não digo que foi perfeito, mas quase perfeito esse festival argentino Viñetas Sueltas. Quase porque é a segunda edição e porque a perfeição não existe. Mas arrisco dizer que foi o melhor evento de quadrinhos de que participei.
Para quem não me conhece, sou desenhista e roteirista; publico meus quadrinhos, ditos alternativos, underground, independentes, "cabeça", ou fanzines há 20 anos. São aquelas HQs que não sustentam ou não são sustentadas pela indústria editorial, revistas de grandes tiragens ou editoras gringas.
Chamo minhas HQs de quadrinho de autor porque faço tudo: escrevo, desenho e edito. Posso parecer meio egocêntrico ao ditar todas essas coisas, mas juro que o assunto ainda é o Viñetas Sueltas.
Falo dessa minha perspectiva autoral e da minha evasão nos ditos grandes eventos dos quadrinhos porque me sinto meio que um peixe fora d'água nesse açude represado que são os renomados "City Comic Con".
Claro que todos os eventos da nona arte são mais do que bem-vindos, mas quase todos partem de cima para baixo. Saem do que o grande público conhece nos quadrinhos, dos super-heróis, aos consagrados mainstream aos eternos Mônica e Cebolinha; e o que sobra dessa miscelânea abre as comportas aos fanzineiros, os bichos-grilos paz e amor que acreditam no sonho e vivem disso nas historias em quadrinhos.
Eu sou dessa facção e não sou hippie. A minha lição de casa é: "faça você mesmo e brigue por um quadrinho mais textual e gráfico".
Por isso, foi grande minha surpresa em 2008 quando descobri que um evento para quem trilha esse caminho "meimufado" estava nascendo em Buenos Aires. Quis pegar a minha mochila e partir no primeiro ônibus, ou avião, mas tive que postergar para o próximo ano.
Então, pensei em como ir, como aplicar o plano perfeito. E a ideia que tive foi resgatar a clássica Peek-a-Boo e transformá-la com os meus parceiros do Grupo Bestiário em Picabu.
Um ano depois, estou com a revista na mão em um avião rumo à capital argentina. E descubro que minhas buscas não são únicas, pois autores do mundo inteiro estão na mesma batida.
O que eu conhecia de quadrinhos dos últimos anos era uma mera ilusão. Sim, foi para isso que serviu esse festival. Viñetas Sueltas serviu para me acordar. Vi muita coisa boa, o que há melhor dos quadrinhos no mundo, creio.
Eu me lembrei do livro 1984, de George Orwell, no qual o mundo divulgado na imprensa é meramente especulativo por um governo ditatorial e corrupto liderado pelo Big Brother. Então há alguém que tente ver o verdadeiro mundo fora das regras ditadas pelo grande irmão.
Minha ida a Buenos Aires foi um pouco parecida com isso. E a cidade, que tem mais livrarias em suas ruas do que há no Brasil inteiro, está longe de ser uma novidade para mim, pois vivi em Buenos Aires por três anos. O povo respira e vive a arte ao extremo. Uma arte que provoca e impõe identidades, personalidades e quebra barreiras. É a casa de Borges, Cortazar, Xul Solar, Alberto Breccia, Astor Piazzolla e outros gênios.
Viñetas Sueltas está lá para deixar a sua marca de genialidade também. Enquanto a maioria dos eventos (aos quais não vou, obrigado!) tem a mera preocupação de vender e premiar, o Viñetas vem mais para integrar e construir arte e cultura como base de referência aos quadrinhos autorais.
Nele, Marvel e DC quase não existem. Nada contra os amados super-heróis, mas há mais coisas para mostrar ao mundo. E Viñetas Sueltas fez isso em diversas e absurdas exposições com a presença de originais de Max, Miguelanxo Prado, Alberto e Enrique Breccia, João Mottini, Domingo "Cacho" Mandrafina, Andrea Bruno, José Muñoz, Lucas Nine e outros mestres.
Exposições espalhadas em diversas partes na cidade e eventos como palestras e oficinas e a feira. Sim, o lugar para ler quadrinhos, gibis, revistas, álbuns ou graphic novels.
Mas, como disse antes, esse festival veio para integrar. Diversos autores circulavam em um ambiente em que as pessoas eram apenas pessoas, nada de fantasias ou colantes (nada contra, mas foi bom estar ali entre gente comum). Coisa rara nesse mundo do Século 21.
E muitas dessas pessoas vieram do Canadá, Suíça, Bélgica, França, Dinamarca, Itália e Brasil. E havia argentinos, claro.
Putz! Esqueci que me pediram para ser breve, mas é impossível com tanta informação de vanguarda. Eu antes era cético em relação aos quadrinhos (mesmo sabendo que isso vai parecer meio arrogante da minha parte, já estou acostumado): apesar de estarmos vivendo uma era marcante no Brasil, a maioria das coisas que vejo e ouço falar sobre a produção nacional me parece ainda buscando um caminho entre o careta mercado gringo e o careta mercado cool gringo. Mas há quem circule fora desse bambolê...
Então, surge um evento dizendo "Dale lo Bueno". Foi isso que gritou o Viñetas Sueltas. Façamos longe, descubramos novas formas, os novos gênios, os novos Breccia, Pazienza, Pratt, Moebius e Hergé. Isso sem querer parecer ou "chupar" esses mestres, mas tendo uma identidade tão marcante quanto a deles.
Imaginei o impacto na garotada que foi com tanta fome quantos seus pais e avós ao Centro Cultural Ricoleta, a sede do evento. Sim, havia quadrinhos inteligentes para todos os públicos. Quadrinhos a fim de entreter e outras cositas mais que a boa arte sequencial pode oferecer.
O Viñetas Sueltas veio para ficar. Vai marcar por ser um festival de identidade e inovação, por abraçar quem busca a expressividade e a força dos melhores quadrinhos atualmente produzidos no mundo!
Valeu, Viñetas Sueltas, te vejo no próximo ano!
Carlos Ferreira
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