sábado, 23 de agosto de 2008

Texto sobre escrever quadrinhos extraído do www.gibiblog.blogger.com.br

Como escrever um bom roteiro pra quadrinhos

E eu sei lá? Ops! Foi mal.... Esquece o que eu disse aí no começo, se assumir que não sei o caminho das pedras não poderia estar escrevendo um artigo que se pretenda resposta a tal pergunta. Então, me dá uma chance, vamos tentar...
Mesmo não tendo uma resposta definitiva, matadora mesmo, para essa pergunta, estou seguro de que ser leitor de muitos e bons roteiros, de boas histórias, é um primeiro passo bem dado na direção certa para se escrever bons roteiros. Eu acompanho com imenso prazer o trabalho de uma infinidade de bons, de grandes roteiristas. Falo de gente como Berardi, Eisner, Laerte, Angeli, Abuli, Oesterheld, Pratt, entre centenas de outros. A temática, a origem, a "voz" de cada um, o seu tempo, tudo isso pode diferenciá-los, mas algo os aproxima: acredito que eles saibam mesmo do que estão falando. Talvez essa seja a mágica, ou parte dela: tornar a coisa crível. E claro, o tesão, o querer contar algo. Mais: ter o que contar!! Todos os autores que mencionei têm o que contar. Nem todo mundo que escreve tem! Ou parece ter um contato muito superficial com o assunto proposto por ele mesmo. Acho que parte do problema do roteiro que não funciona bem reside no fato de seu autor ficar na superfície das coisas, dos lugares e das pessoas de quem está nos falando. A gente fala melhor do que conhece, do que experimenta. Eu não o conheço pessoalmente, mas acho que o Angeli poderia dizer, a maneira de Flaubert, que "a Rebordosa sou eu". Ou então poderia dizer que transou com ela. Se disser, eu acredito nele.
Acho que quanto mais descolado o assunto abordado por um autor é de sua realidade menos chance de se sair bem ele terá. Essa realidade é, certamente, a cotidiana, mas não só: também pode ser a de suas eleições afetivas, aí entram os livros, as músicas, os filmes, as revistas que esse autor lê. O mundo desse autor, enfim. Tudo o que ele apreende se constitui parte de sua realidade.
E quanto maior for o mundo habitado por esse autor, quanto mais permeável, aberto e sensível ele for, maior suas possibilidades de emprestar um sentido de verdade para suas narrativas. O mundo do personagem de um autor tem, quase sempre, o tamanho do mundo desse autor. Se o mundo do personagem é pequeno, sem relevo, é provável que o mundo do autor esteja precisando de uma ampliada, de uma reforma. Isso não tem nada a ver com o espectro do autor ou do seu personagem no mundo, com o peso da influência de um ou a grandiosidade dos atos do outro. Um bom autor não precisa que seu personagem salve o mundo pra produzir uma grande narrativa, ele se sai bem falando sobre nada até, vide Harvey Pekar. O tamanho do mundo proposto aqui não tem nada a ver com a extensão dos acontecimentos narrados num roteiro. Muito pelo contrário. Tem mais a ver com uma certa idéia de realidade cara ao autor, algo que se impõe no texto como assunto recorrente, uma espécie de subtema, mesmo que ele não se proponha a colocá-la ali, mesmo que esteja narrando uma aventura espacial ou uma saga bucaneira. Se ele não fugir muito dela, deixar sua história permeável a esse assunto recorrente, seu roteiro terá mais chances de dar certo, de se agüentar de pé.
Eu tenho um assunto recorrente, do qual não consigo me descolar, embora tenha uma certa dificuldade em elaborar isso muito claramente. Sei que é meu assunto é recorrente porque eles estão sempre lá: homens e mulheres que precisam se virar porque não há ninguém pra cuidar deles, não há um Estado mediando os conflitos em que eles se metem, defendendo seus direitos. Não há nem Deus, nem Paraíso, nem recompensas pós-vida por bom comportamento. Meus personagens podem ser uns mais éticos que os outros, uns podem se acanalhar mais, outros podem desafiar o mundo hostil em que vivem, mas estão sempre se virando como podem, sozinhos. Esse é, quase sempre, meu assunto. Seja numa história que se passe no Rio de Janeiro, no interior de Mato Grosso, em Cuba ou nos Estados Unidos da Grande Depressão. Isso não é uma coisa pensada, acontece assim porque, acho eu, vivo num país onde a desigualdade social é muito grande e o estado esteja ausente da vida de uma grande parcela da população. Isso não explica tudo, mas é parte da explicação. Mesmo quando ambiento minha trama em outro país eu não me descolo do meu universo. Não por acaso, a trama de Big Bill está morto, meu gibi com trama ambientada nos Estados Unidos, se passa durante a Grande Depressão. Acho que com algumas mudanças aqui e ali essa história poderia se passar, sei lá, num Brasil que eu conheço, em meio a um desses bolsões de pobreza e ignorância que somos bons em perpetuar. E aí, só pra abrir um parêntese, acredito que a realidade cotidiana acaba por ditar, ao menos em parte, a escolha da realidade afetiva e, por tabela, ditar o assunto de um escritor. Se de um lado parte da escolha por contar a história do Big Bill, um negro sensualista e provocador, tem a ver com minha própria negritude (nem tão sensualista e nem tão provocadora) e por eu saber o que isso significa, também é verdade que a leitura de autores geniais como John Steinbeck ou o injustamente descatalogado no Brasil Erskine Caldwell, para citar alguns, têm seu peso. Mas, por outro lado, quem disse que o fato de um escritor ter um papel maior ou menor na vida de um leitor não tenha uma explicação que transcenda seu talento, sua genialidade? A eleição de um autor ou de um livro como algo central na vida de alguém é ditada, em parte, pelo fato de o leitor ser quem ele é e viver uma determinada realidade cotidiana. Você pode pegar dois gênios, vamos pensar em Nelson Rodrigues e em Lígia Fagundes Teles, e se perguntar porque um tem um espaço maior do que o outro na sua vida. Alguma coisa além do talento deles pesou na eleição de um e não de outro. Bem... Talvez seja melhor esquecermos essa divagação capenga e indefensável pra voltarmos ao "como escrever um bom roteiro para quadrinhos".
E agora, só agora?, vou ser sincero com você: não faço a mais remota idéia de como fazê-lo, não conheço o segredo. Evidente que, para além de tudo o que eu disse acima (e devo ter dito um montão de bobagem), tem que estar a preocupação com o aspecto formal do texto, com sua estrutura, mas sobre isso eu não tenho nada a dizer, ao menos não posso falar com a segurança de quem sabe mesmo do que está falando. Sei que se o roteiro tiver começo, meio e fim ajuda um bocado. Acredito que a gramática do roteiro a gente vai aprendendo enquanto vai escrevendo, é como andar de bicicleta. Com o tempo você vai sentindo o tempo da narrativa como um todo e da cena em particular, vai descobrindo como cada cena é importante e em que medida ela ajuda a desenvolver personagens e a contar parte da história. Vai aprendendo os truques, mesmo que inconscientemente, mesmo sem querer. Não creio que o segredo esteja na estrutura - embora também esteja. Para ser franco suspeito, de verdade, que o segredo do bom roteiro resida fora dele, na vida. E que se a gente trouxer um pouco dela pra dentro do texto a coisa tende a funcionar que é uma beleza.

Wander Antunes

Contista e roteirista de quadrinhos. Autor dos roteiros de As aventuras de Zózimo Barbosa, Crônicas da província e Big Bill está morto, entre outros.

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