segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Como não escrever um roteiro – ou Apertem os Cintos que Deu a Louca no Império dos Super-Comics


(Parte I de 3)

Com quanta canoa se quebra o pau com a Marvel Comics?


Podemos começar com uma figura mais conhecida, V, aquele livro aberto botando o terror num sistema horroroso. A lenda ilustrada conta que ele mantinha uma galeria subterrânea repleta de cartazes, discos... ah, e livros, é claro. Com a dinâmicas das fixações nos artigos que se chamavam de culturais, atualizava seu repertório. Analogamente, a leitura do próprio seriado ou álbum é um caminho atravessado de informações. Só não deveriam restringir drasticamente o nosso horizonte – essa linha, nem tanto ao céu, nem tanto à terra, disputada e controversa. A decoração, composição de estímulos e lembranças, criava janelas, rotas de fuga e brechas para novos combates.

Decorar pode não ser bolinho, mas ler Histórias em Quadrinhos era deleite pelo qual me balançava com alguma informação, me aculturava no estrangeiro e me alfabetizava em línguas maternas e estrangeiras. Pois se não conheci a “terra do sol nascente” e do mangá, estive no hemisfério norte do “velho” e do “novo” mundo, pegando o bonde da escolaridade andando, aproveitando acervos públicos (e privados, familiares) de Bandas Desenhadas (como dizemos as nossas HQs no velho mundo), e ainda recomendo alguns estilos dessas leituras, nem que seja para a apreciação e o conhecimento de repertórios de uma língua – assim informada por tais e quais produções. Se estranhava, é verdade, a compenetração suscitada por uma literatura apoiada em imagens “prontas”, com tanta bagagem literária para se aprumar. Estranho o estranhamento buscando rebatê-lo com informação sem fronteiras, apanhados dela e composições, acercando-me de potenciais elos instigantes de um curso deste mundo da vida presentes na tortuosa formação de uns quantos hábitos de leitura e quiçá relações.

Um desses “elos” ou agentes culturais pelos quais um olhar inquisitivo poderia fazer algumas descobertas é outro que faleceu de tanto fumar, aos 60 anos, em Las Vegas, quando aguardava um transplante (10 de fevereiro de 2008). A longa e importante trajetória de Stephen Ross Gerber traz alguns méritos bem relevantes à discutível história dos Quadrinhos norte-americanos (os famosos Comics), reciclando e criando personagens, e zelando por uma etiqueta com respeito às suas escalações, com repercussões que seguem para mais além das próprias obras ficcionais e narrativas que escreveu. Mas a mais notória delas, não por acaso coincide com um de seus personagens próprios mais característicos e populares, passando por olímpicas intrigas palacianas que deram-lhe fama de arredio num sistema proprietário que acabou tendo de enfrentar judicialmente por uns quatro anos, após ter se tornado talvez digno de um posto de editor-chefe, ou de decliná-lo, se tivessem lhe oferecido. Foi em 1978 despedido por se dispor a batalhar direitos frente aos Sindicates (distribuidores de tiras para aqueles os jornais que foram o berço das HQs modernas, segundo a bem oficializada história deles, tão frequentemente adotada e globalizada por brasileiros) na justiça. Em 1982 Steve iria finalmente entrar num acordo “pessoal” com a “casa das idéias” Marvel, mas não antes de unir forças com Jack Kirby (o lendário-inigualável campeão-industrioso-olímpico dos desenhos sequenciais da tal linha de pretensa “super-ação”) na produção de Destroyer Duck arrecadando fundos para as batalhas judiciais por seus próprios personagens.

A conveniência de se conhecer e divulgar esta luta por dignidade e condições de trabalho também envolve o interesse por uma opinião profissional menos reverente e mais próxima à figura de Stan Lee (aquela tradicionalmente “apresenta” as narrativas da editora, talvez se interessando mais verdadeiramente por esta forma de mídia do que Walt Disney, que sabidamente se importava mesmo era com desenhos animados e os dispositivos mecânicos de seus notáveis brinquedos cenográficos). Tal curiosidade foi bastante satisfeita no desenvolvimento de uma entrevista de Philippe Garnier para uma legendária revista rockeira de “Bandas Desenhadas”, a métal hurlant (esta métal “berrante” é a publicação que daria origem à mais conhecida “Heavy Metal”) fundada por quatro aficionados da Ficção Científica e da HQ auto-intitulados “os humanóides associados”. Druillet, Moebius, Dionnet e Farkas, entre outros realizadores de narrativas gráficas, resistiram ideologicamente por mais de década aos pós-68, “imaginando”, calando fundo, imprimindo. Eram cem páginas de qualidades cada vez mais desiguais por edição, com um povo botando bronca em banca e os desenhistas querendo conhecer e dando conta de recados, não apenas de suas marcas “tribais”, referências profissionais, idiossincrasias e preferências íntimas, embora logicamente a banda também não se furtasse a passar por aí, bem pelo contrário. Algumas páginas chamavam graficamente a atenção para textos operando ganchos principalmente sob aspectos visuais e editoriais, mas também narrativos e até “publicitário”, bastante notáveis, valendo-se de gírias a granel e dos desenvolvimentos estilísticos mais sintéticos e midiáticos, jornalísticos mesmo, de então. A entrevista encontra-se no número 38, de fevereiro de 1979, com a capa divulgando o retorno de Gir-Moebius às produções do tenente Blueberry entre índios de far-west. A segunda capa veicula um manifesto, junto a mais seis importantes casas editoriais daquelas revistas ilustradas ditas recomendáveis a leitores adultos (incluindo as prestigiosas Casterman (A Suivre), Dargaud (Pilote) e Editions du Square (Charlie, B.D.), entre outras mais notavelmente humorísticas, como a Editions du Fromage (Echo des Savanes) e Editions Audie (Fluide Glacial), além da Elvifrance de Sam Bot, etc.) denunciando mordaças tirânicas de uma pesada proibição legislativa (de 1949, e apenas levemente atenuada em 1973) exercida em nome de uma suposta vigilância às publicações “infanto-juvenis” na França. Talvez nos interessassem mais aqueles artistas, que levavam jeito de tratar, de entoar, de desenhar, refletir, etc., naqueles tempos em que protestar era condição de possibilidade e defesa do direito humano a batalhar uma expressão mais livre e consistente ou consequente. Na página 26, “Réquiem para um Pato ou: Pato no Sangue” – parte dois da entrevista de Philippe Garnier a Steve Gerber em Hollywood – vinha desnudando até o cerne uma famosa corporação multinacional dos enlatados de papel. No epicentro do fenômeno, o pato Howard “aprisionado num mundo que ele jamais construiu!” antes mesmo de ter sua satírica figura de comédia – hoje casualmente em propriedade da Disney Company, com as demais personagens vinculadas ao conglomerado editoral da Marvel – cinematografada. Por sinal, eu soube da transação com a Disney, que oficialmente visa “conteúdo de marcas de qualidade, inovação tecnológica e expansão internacional”, numa coluna de jornal local ilustrada pelo irritadiço Howard avançando decididamente por supostos corredores em que cruzaria com outro pato maluco, agora seu colega, o tiozão, por assim dizer, Donald. Naturalmente que esta notícia me desencadeou uma pequena série de associações recordativas, isto e aquilo dando o estalo de queimar as pestanas e inicializando presentes considerações sobre ficções nossas de cada dia estendendo a palavra ao operário exemplar – e talvez ilustre desconhecido por estas paragens – Steve Gerber.

Ele tentara escapar de lugares manjados como Hollywood e Nova Iorque para a “cidade 24horas” de Las Vegas – voltando, portanto, aos anos 70, parecia interessante, para os seus famosos esquemas excêntricos de horário (famosos por conta de seus cochilos literais, lógico, que contrastavam com sua articulação expressiva com metáforas e competências narrativas destacadas). Um não-lugar? Cura para uma depressão nervosa? O entrevistador Philippe Garnier questiona a verdadeira tentativa de Steve morar ali mais por ter lido o então considerado melhor livro escrito sobre tal cenário, “Vegas”, onde o autor (John Gregory Dunne) relata ter se mudado para lá por um ano a fim de curar justamente sua depressão nervosa.

Encontrar Steve Gerber em Hollywood fora de uma facilidade infantil. O próprio Howard respondera na secretária eletrônica, “ou ao menos uma voz aquática do tipo”. Seguiram-se apenas duas horas de espera. Steve não estava muito cansado de lidar com a imprensa, em grandes crise ou coisa do tipo. Ao menos Philippe Garnier o encontrou muito amigável e tranquilo, além de (por que não dizer?) criativo, autêntico, humano.

A história com a Marvel é que, naquelas alturas, ela tinha tantos títulos que era possível passar um argumento ao artista sem mostrá-lo ao secretário de redação. Exatamente assim nasceu o Howard, em dezembro de 1973 na revista Adventure into Fear # 19: Roy Thomas só foi avisado quando já era tarde. Sobre a clara derramada, ele teria dito: tudo bem, vamos experimentar este número. Mas logo pediram que Steve Gerber desse um jeito de se livrar do personagem, o que ele fez à moda Marvel, ou seja: liquidando-o sem que ficasse morto “de verdade”. Os correios de leitores reagiram de forma surpreendente. A redação chegou a receber um animal morto, por exemplo, de um leitor do Canadá, com uma nota relativa à morte do pato tratando-os por “assassinos”. Obrigaram-se a devolver Howard à circulação das idéias editoriais e à “vida”. Em 1976 ganhou revista própria, que teve seus primeiros 26 números escritos pelo próprio Steve Gerber.

Como um empregado que teria sido o estopim daquela situação excêntrica acabou na prática do controle sobre a revista de linha (“comic-book”) Howard the Duck? Novamente em vista da situação, ninguém sabia precisamente o que se tinha em mente para a personagem, e em função do caráter industrial da Marvel, Gerber chegou à direção de quase todos os aspectos da publicação. “Stan Lee, que na época dava muitas conferências nas Universidades, não parava de perguntar à redação: como é que ele se chama mesmo, o pato de vocês?”

Uma ou duas dificuldades, que dizem respeito à censura: o número dois tinha um diálogo do casal protagonista sob lençóis. Quem gritou mais alto foi o pessoal do “código de ética” (que trabalha(va) só para isso mesmo), e foi preciso redesenhar o painel, de modo que ela permanecia sob cobertas e ele sobre elas (as cobertas), desnudo, mas sobre as cobertas. Como esse pessoal do gibi norte-americano realmente parece ter dado todo um novo sentido à palavra “patético”, vamos pular outro “episódio” desse tipo – cujo antecedente seria “les Stones” no provocativo rock´n Roling: “Let´s Spend the Night Together” (lançado em janeiro de 1966). Mas o curioso é que se esperava que a natureza de pato permitisse dessas liberdades, segundo o seu autor, já bem pouco apelativas para a época. Ele próprio nem se interessava realmente, na verdade, pelo que poderia haver por trás da relação do casal, como “pelas mesmas razões” nunca mostrou o país ou universo paralelo do qual vinha o protagonista.

O entrevistador (Philippe Garnier) repara que os roteiros de Steve Gerber enveredam frequentemente por trilhas inter-galácticas e pergunta se ele gosta de fazer essas coisas ou se é por trabalhar na Marvel. Na resposta há uma convicção de que as coisas neste formato são ideais para apenas “estes dois tipos de história”, decididamente não sendo a praia ideal para o meio de campo dos westerns, policiais ou histórias de guerra, por exemplo – apesar de eventuais produções luxuosas, de textos fartamente ilustrados, já saírem por aí a fora. “Tendo a preferir a história que chega das ruas, e acho que por um momento a Marvel também tomou este rumo, mas com a Marvel precisa sempre atenuar as coisas e dar a elas essa dimensão fantástica. Francamente não sei onde me situo. Estranho por estar absorto em projetos bem diversos, de quadrinhos, filme, livros, etc., mas nalgum sentido são estes projetos que me ajudam a me desembaraçar um pouco destes problemas.” Livros muito orientados ao fantástico, o filme não, mesmo que contenha elementos do fantástico, se passando em Las Vegas, que já é muito fantasiosa, complicando as coisas. Se o roteiro é encomendado? Não: “Nesta cidade, todo mundo sabe, precisa ter algo a se mostrar, então vou mostrar isso. Por sorte a mulher com quem vivo conhece todo mundo e sabe como as coisas acontecem por aqui, o que talvez me impeça de ficar demente.” Indagado pelas produções do velho mundo em “Banda Desenhada”, e mais particularmente a francesa, confessa não encontrar enredo tão atrativo como o possível interesse visual, mas diz estar mal situado para julgar, devolvendo educadamente a pergunta.

Aí chega o questionamento de um método que poderia parecer obviedade para o homem “que trabalha nisso há seis anos, mas para nós é um pouco misterioso, principalmente o lado esteira-de-produção de Marvel. Não há equivalente entre nós, talvez tirando os Studios Hergé nalguma época. Tecnicamente, como se escrevem roteiros de comics?” A usina marvete, em seus bastidores? “Primeiro se escreve uma sinopse, seis ou sete páginas, eventualmente mais. Isto depende com quem se trabalha; quando você conhece o sujeito que vai desenhar a história, você sabe mais ou menos o que ele vai colocar... Depois a sinopse vai para o pencilman, o desenhista que elabora toda a história a lápis conforme tuas instruções; ele acrescenta o seu toque pessoal ou não, conforme a personalidade dos colaboradores. Ele geralmente deixa um terço do quadro desocupado, para a inserção de balões. Depois disto a história volta ao writer, que dialoga. Mas, na prática, este diálogo depende da qualidade do desenho. Se o desenhista é dos bons, ele contou toda a história, então eu só preciso refinar e acrescentar minha própria contribuição, que é o diálogo, e o diálogo não deveria ter que contar a história; por exemplo com (Gene) Colan eu podia me permitir sutilezas que eu não podia com outros... Uma história deve ser desenhada de modo a ser imediatamente legível. O modo com que os quadros são divididos e dispostos é muito importante; é um pouco como a montagem para um filme.” O entrevistador se lembra de diagramações muito particulares de (Frank) Brunner, logo nos primeiros números da revista; e outra vez, com Colan, quando Bong e Howard afundam o assoalho do banheiro e aterrizam sobre os vizinhos de baixo em plena partida de poker: eles passam de quadro para quadro, como uma casa em plano de recorte. O exemplo é de história bem conduzida, mas existe o caso contrário, que chama a atenção para inverossimilhanças como no episódio (parece que) 21, do Soofi, quando Colan deixou o serviço e ele foi finalizado por um tapa-furos interino antes que Mayerik retomasse “a coleira”, um tal de Carmine Infantino, “filipino”. Numa página vê-se Soofi pegar Howard com uma mão; um quadrinho abaixo ele é arremessado pela outra. Por cúmulo, a máquina de lavar em que ele o joga abre de dois lados diferentes, os trincos da porta não estão do mesmo lado nos dois quadros. Quando isto ocorre na mesma página, fica muito ruim. Este é um caso de história não apenas nada inspirada, como um exemplo de história mal contada. Mal conduzida. Quando te chega um negócio desses, é muito difícil contar a história; é preciso costurar, explicar o que acontece. O melhor era não precisar fazer isso. É um pouco como no cinema, quando o/a continuista não faz o serviço, sim, mas para voltar ao processo de fabricação dos gibis, uma vez dialogados, a história e os painéis vão para o arte-finalista (que “dá as tintas”). Eu escrevo os diálogos dizendo página tanto, balão um, dois, três... Mas existe um letreirista para realizar os balões. Que são bastante limitados, quando se pensa a respeito: os balões não mudaram por anos; você tem o balão estático, com os estalactites; o balão relâmpago-explosão, o balão pensador, etc...” (de fato, quando pintam uns balões com personalidade, marcam náipes e estilo de uma revista Sandman, já nos anos 90, na outra editora cosmológica de comics, a DC – criando o selo “Vertigo”) “Voltamos ao que se dizia sobre os limites do gênero: as imagens não se movem, o lugar é muito limitado, o processo de impressão é tão nojento que, mesmo se os artistas fossem capazes de desenhar mais de cinco ou seis expressões, a sutilidade se perderia de qualquer maneira com as chapas – que são de plástico. Acredite em mim se quiser, mas chegaram a tentar fazer chapas de papel para economizar... Não funcionava... E antes, os comics tinham vinte páginas de cartoons; agora estamos reduzidos a dezessete. O que é de longe a pior extensão para contar uma história, eu te garanto que é.”

Redação e traduções para nosso Português: Ethon S. A. da Fonseca

Na próxima parte: o plasma do Kiss tem poder (nas HQs)? Chaves, fechaduras e trânsitos das cidades, seus proprietários e guardas zelosos (principalmente Stan Lee: descobrimo-lhe um autêntico surto de crise da consciência na famosa jogada publicitária com sangue derramado em que se viu envolvido!). Aguardem...

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